segunda-feira, 25 de julho de 2011

O dom de pensar e a servidão do pensamento

Criados para pensar 
Deus escolhe um momento único e último — como símbolo de sua importância — para criar os seres humanos, parcela privilegiada da criação, marcados com os atributos de sua imagem e semelhança, entre estes a capacidade de pensar. Os humanos, pela graça de Deus, são os únicos seres pensantes. Isso os equipa para a realização do propósito de serem mordomos e continuadores da obra de Deus (mandato cultural). 

Somente os humanos seriam capazes de compreender, refletir, propor e intervir significativamente. Vão, assim, gerando as culturas em sua materialidade (cadeiras, automóveis) e imaterialidade (governo, moral), com toda sua diversidade. A expulsão do Éden trouxe a ambigüidade e a contradição entre a imago dei e o pecado em todos os seres e em tudo que fazem, inclusive no pensar. Além de diferentes coeficientes intelectuais, pensamos construtiva ou destrutivamente. 

A queda não leva Deus a desvalorizar o pensamento humano. Ele o inspira na elaboração das Escrituras Sagradas e o ilumina em sua leitura — nunca o anula. Isso nos difere da visão islâmica (ditado textual) e da visão espírita (psicografia). 

Pensar é um dom, um privilégio e uma responsabilidade. Paulo nos ensina que, no processo de santificação, vamos nos aproximando dos pensamentos de Deus, “tendo a mente de Cristo”. 

Querer ser como Deus (e pensar no infinito de Deus) foi o pecado original. Fugir do pensar é desobediência, preguiça intelectual e agressão a um dom outorgado. Ignorância deliberada, embotamento mental, bitolamento reflexivo, dogmatismo do saber são igualmente expressões do pecado. “Crer é também pensar” — bem afirmou conhecido teólogo. 

Os riscos do pensar Pensar é também um exercício perigoso. Os sistemas de poder políticos, econômicos e religiosos, em todas as épocas, elaboraram sua compreensão “oficial” das coisas (ideologia), que justificam suas existências, tantas vezes perversas. Questionar o pensamento “correto” ou “normal” e propor alternativas (utopias) é sempre entendido como atividade “subversiva”, resultando em prisões, torturas, censuras, ostracismo, degredo e morte. O pensamento nunca é neutro ou sem conseqüências. 

O estado, a escola, a mídia, a igreja têm sido instrumentos de uma tarefa domesticadora, enquadradora na ordem (pecaminosa), mutiladora ou inibidora do pensamento. Afinal, o que foram (e são) as inquisições? A teologia da denominação, a ideologia do partido, a moral da sociedade nada mais são do que expressões localizadas do “pensamento único” e “correto” contra os desvios tidos como delituosos, heréticos ou imorais, mesmo que (e na maioria das vezes) a sua fonte seja a cultura e os sistemas, e não a revelação. 

A filosofia originada entre os gregos foi um grande avanço na sistematização do pensamento humano. Se, por um lado, condenamos o delírio racionalista arrogante, não podemos deixar, por outro lado, de igualmente condenar o preconceito contra a filosofia (e as ciências humanas) nos círculos religiosos reacionários, que confundem ignorância com inocência e irracionalidade com santidade e se vêem como donos da verdade. 

Graças ao dom de pensar, temos hoje aviões e vacinas, rádios e democracias. Seria insano querer a volta à caverna e à tirania. 

O cristão conhece suas limitações e condicionamentos, inclusive na tarefa de interpretar o texto sagrado e o mundo em que vive, o que o deveria conduzir à humildade e à escuta respeitosa do ponto de vista alheio. 

Hereges ou profetas? Na experiência pessoal, na dimensão subjetiva existencial, o pensamento pode ser fonte de bênção ou de maldição. Muitos são prisioneiros de sistemas fechados de pensamento (inclusive religiosos), elaborados com sentido em outras épocas, lugares e circunstâncias, e que agora afogam o seu superego (consciência inibidora), em razão de sua indevida sacralização. Muitos se acomodam em suas “gaiolas de ouro” do saber, que lhes dão falsa segurança e os poupa da dor e dos riscos do pensar alternativo libertador. Fazer escolhas é sempre doloroso, especialmente quando se escolhe diferentemente da maioria ou dos sistemas. Muitos se sentem confusos, dilacerados, desorientados, frustrados, culpados, perdidos, desajustados pelo incontrolável exercício do pensamento com ruptura. 

As limitações dos que se sentem “infratores” nunca permitirão que percebam a grandeza de serem, muitas vezes, inovadores, criadores, revolucionários, construtores da história. 

Os destinados a profetas, mas que se acham apenas hereges ou pecadores, sentem a compulsiva necessidade da auto-flagelação, exibida em deprimentes espetáculos públicos, a necessidade do humilhante flagelamento corretor do grupo social, em ritos que os levam a uma nova aceitação na “normalidade”, quando voltam a conhecer a (in)felicidade e a paz volta a reinar por muitos e muitos anos... 

Discernir é preciso. A providência, a graça, a cruz, o túmulo vazio nos libertaram das cavernas, da lei, das ideologias e dos sistemas, possibilitando a in-conformação criadora e o martírio como morte pela vida. 

Em um mundo de arrogantes “idéias únicas”, como o neoliberalismo, o fundamentalismo e outros, Deus continua a levantar profetas do pensar, nem sempre dignos de sua vocação. Os condicionamentos, as fragilidades, os medos terminam por desqualificar seu cérebros inutilmente brilhantes da tarefa de “singrar novos mares” na vida e na história. 

Ainda bem que Jesus pensou... e quão diferente... 

Robinson Cavalcanti

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