Bem antes de Jesus, Salomão, o sábio que investigou profundamente a natureza humana, registrou: “O coração dos homens [...] está cheio de maldade e de loucura durante toda a vida” (Ec 9.3). Depois de Jesus, Paulo, outro analista do comportamento humano, demonstrou que há um abismo entre a vontade de acertar e a vontade de não acertar: “O que a nossa natureza humana quer é contra o que o Espírito quer”. O apóstolo conclui sem rodeios: “Os dois [a vontade humana e a vontade divina] são inimigos” (Gl 5.17, NTLH).
O drama da pecaminosidade latente é problema hereditário e sem solução, do nascimento à morte, enquanto não se concretiza a esperança de um corpo novo. A propensão pecaminosa é um fato universalmente aceito e confessado, por crentes e descrentes, por teólogos e pensadores, por escritores, jornalistas, artistas e pessoas comuns, desde os tempos mais remotos até hoje. É por isso que o moralista inglês Samuel Johnson, autor de A Vaidade dos Desejos Humanos, escreveu no século 18: “Cada qual sabe de si mesmo o que ele não ousa contar ao seu mais íntimo amigo”. É por isso também que o escritor francês Paul Valéry, 100 anos depois, escreveu que “os homens se diferem pelo que mostram e se assemelham pelo que são”. É por isso ainda que Gabriela Silva e Leite, coordenadora nacional da Rede Brasileira de Profissionais de Sexo, sentindo-se prejudicada por uma providência da Prefeitura do Rio de Janeiro em 2001, teve a coragem de escrever que “o senhor César Maia, acima de prefeito da cidade, é homem e, nessa condição, igual a todos os outros homens: frágil”.1
Não é só a teologia cristã que ressalta a necessidade de se rejeitar o mal interior em benefício do bem interior. Um dos empresários mais bem-sucedidos do Brasil, Antonio Ermínio de Moraes, afirmou que “a corrupção é uma doença altamente contagiosa e para a qual não há cura”. Como para a diabetes e outras doenças crônicas, não há cura para a corrupção, “mas o controle contínuo pode reduzir drasticamente os seus efeitos secundários”.2
O famoso escritor e psicanalista italiano Contardo Calligaris, autor de Hello Brasil!, residente em Boston, escreveu:
“Todos vivemos, de uma maneira ou de outra, um conflito entre o que desejamos e o que nos permitimos desejar. E é bom que seja assim. Se nos autorizássemos tudo o que queremos, a vida e a convivência social seriam complicadas. Em outras palavras, é normal que a gente navegue num equilíbrio mais ou menos precário entre os desejos que brotam (devaneios, projetos) e as mil vozes (conscientes ou inconscientes) que nos inibem, que nos pedem procrastinação e desistência ou, simplesmente, que propõem escolhas diferentes.”3
Temos de ser duros com nós mesmos e com os outros para concordar com o famoso teólogo reformado suíço Emil Brunner: “Pecador não é aquele que tem algo podre, como a manchinha podre de uma bela maçã, que se tira com a ponta de uma faca, mas aquele que é podre no cerne e infestado de podridão”.4 Precisamos lembrar que “não somos pecadores porque pecamos, mas pecamos porque somos pecadores, nascidos com uma natureza escravizada ao pecado”.5
O jornalista e escritor Carlos Heitor Cony colocou na boca de um certo Caldas o seguinte dilema: “Ou mantemos o espírito alerta, senhor da carne, ou teremos a carne como senhora do espírito”.6
Quando o espírito falha, as coisas se agravam de modo assustador, pois “a carne é como o inimigo do lado de dentro que abre a porta para o inimigo que está forçando a porta”, como dizia o pregador escocês William Barclay!7
Notas
1. Jornal do Brasil, 14 maio 2001. p. A-9.
2. Folha de São Paulo, 20 jun. 2004. p. A-2.
3. Folha de São Paulo, 17 jun. 2004. p. E-8.
4. Nossa Fé. p. 38.
5. Nota teológica da Bíblia de Genebra. p. 650.
6. Folha de São Paulo, 20 jul. 2004. p. E-10.
7. As Obras da Carne e o Fruto do Espírito. p. 24
Perda de identidade
Blaise Pascal — O homem somente achará explicação para si mesmo na religião e, especialmente, no dogma cristão do pecado original, que melhor explora o dualismo fundamental da natureza humana.
Ovídio — Oh! Que é isso que, quando queremos ir para um lado, nos arrasta para o lado oposto?
Paulo — Não entendo o que faço. Pois não faço o que desejo, mas o que odeio.
Agostinho — Tornei-me para mim mesmo uma grande questão.
Angelus Silesius — Eu não sei o que sou, eu não sou o que sei.
Fernando Pessoa — Nenhum de nós é totalmente transparente a si mesmo.
Dietrich Bonhoeffer — Quem sou eu? Este ou aquele? Sou eu um, hoje, e outro, amanhã? Sou eu ambos ao mesmo tempo?
Fonte: Revista Ultimato
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