segunda-feira, 18 de julho de 2011
Quase Escorreguei
Sou judeu, da tribo de Levi, e músico por vocação e deleite. Meus instrumentos preferidos são a harpa, o alaúde e o címbalo, todos muito antigos. Nas minhas apresentações uso com mais freqüência os címbalos sonoros e os címbalos retumbantes, instrumentos de percussão compostos geralmente de dois discos de metal, que têm no centro uma pequena cavidade para aumentar a sonoridade. Fui designado músico e cantor pelos levitas, que tinham sob sua responsabilidade os serviços religiosos de Jerusalém. Participei do magnífico cortejo musical que levou a Arca do Senhor da casa de Obede-Edom para a tenda armada pelo rei Davi. Naquele dia o rei me descobriu e me fez ministro de música. Porque também era músico — exímio tocador de harpa e profícuo compositor de salmos —, Davi deu grande ênfase à música de adoração, como expressão de louvor a Deus. Ele fazia questão de que levantássemos a voz com alegria e reservava a si a supervisão geral de toda atividade litúrgica. Éramos 4 mil levitas, que, em 24 turnos, louvávamos continuamente o Senhor com instrumentos fabricados por ordem do rei para esse fim. A maior parte era formada de iniciantes, que aprendiam música com os mais competentes. Era uma verdadeira escola de música sacra. Meus filhos faziam parte do corpo docente — 288 mestres ao todo.
Modéstia à parte, eu e meus filhos escrevemos doze dos 150 salmos que estão na Bíblia (os onze primeiros do livro terceiro e o salmo 50). Neste testemunho quero explicar com mais detalhes a crise que me acometeu e da qual falo no salmo 73.
Dentro da crise
“De tanto ver triunfar as nulidades, de tanto ver prosperar a desonra, de tanto ver crescer a injustiça, de tanto ver agigantarem-se os poderes nas mãos dos maus”,2 cheguei a desanimar da virtude. E esse desânimo me levou a uma terrível crise existencial. Quase me resvalaram os pés em direção ao abismo da incredulidade. Pouco faltou para que eu rompesse com a idéia de um Deus sábio, bom e justo, e jogasse fora a rica tradição religiosa até então acumulada. Estive perto de uma violenta mudança de pensamento e de comportamento. Quase troquei “Jesus, alegria dos homens”, de J. S. Bach, pelo “Tico-tico no fubá”, de Ari Barroso. Quase troquei os oráculos de Deus pelo horóscopo. Quase troquei o templo do Senhor por um terreiro de macumba. Quase mandei tudo para o inferno!
Meu problema é que eu tinha inveja dos pecadores. Eu também sou como eles, sujeito aos mesmos sentimentos e paixões. Por uma questão de princípios e pelo temor do Senhor, eu abortava na fonte os desejos pecaminosos. Quantas vezes desejei vingar-me, quantas vezes fui açoitado pela ira, quantas vezes quis projetar-me, quantas vezes fui assaltado pelo egoísmo, quantas vezes a falta de recato da mulher alheia me atiçou a lascívia, quantas vezes senti desânimo e preguiça. No entanto ofereci forte resistência a todos esses sentimentos e deles me privei por amor do Senhor e por causa de seu nome. De repente me senti frustrado e me perguntei: “Será que foi à toa que eu me esforcei para não pecar e permanecer puro?”
Pois, enquanto eu crucificava a minha carne, os pecadores me pareciam livres, desinibidos, evoluídos, descomplexados, bem-sucedidos, felizes, seguros, altivos e tranqüilos. O que mais me desnorteou foi a falsa impressão de que meu zelo não me rendia nada: Deus não me tratava de modo todo especial. Ele não me poupava das intempéries, do cansaço, da aflição, da doença nem da disciplina em caso de erro, por menor que fosse. Outra coisa que me machucava era a popularidade dos pecadores e o meu anonimato.
A crise que me acometeu não foi brincadeira. Demorou algum tempo e me desgastou muito. Tentei descobrir o que estava acontecendo, mas em só refletir para compreender isso, achei mui pesada tarefa para mim. Até que um dia entrei no santuário de Deus e atinei com o fim último dos pecadores que eu estava invejando.
Dentro do templo
Dentro do templo é outra coisa. Ganha-se, ou recobra-se, como foi no meu caso, a perspectiva cristã da vida, que envolve o tempo presente e a eternidade. Renova-se a fé na existência e no caráter de Deus. Chega-se outra vez aos seus atributos invisíveis — Ele é eterno, imensurável, incompreensível, onipotente e também supremamente sábio, clemente, justo e verdadeiro. Dentro do templo eu me senti orgulhoso, desrespeitoso e insolente por haver duvidado da justiça de Deus para comigo e para com os pecadores. Percebi que eu havia retirado o meu voto de confiança em Deus e por isso estava perplexo. Dentro do templo eu abri a minha alma e derramei perante o Senhor a minha ansiedade, a minha aflição, a minha dúvida, a minha revolta.
Então comecei a entender e ver com clareza. Lembrei-me do salmo de Davi, que cantávamos com freqüência: “Não te indignes por causa dos malfeitores, nem tenhas inveja dos que praticam a iniqüidade” (Sl 37.1). Tivesse memorizado melhor esse salmo, a crise teria sido mais passageira, pois o ímpio prepotente nesta vida se expande qual cedro do Líbano (v. 35), mas será como o viço das pastagens: será aniquilado e se desfará em fumaça (v. 20). Nada teria me acontecido se eu não tivesse perdido a certeza de que “mais vale o pouco do justo que a abundância de muitos ímpios” (v. 16). Tão perto de mim, tão freqüentemente em meus lábios, por que deixei escapar o ensino e o conforto deste salmo e não o apliquei a mim mesmo?
Ainda dentro do templo percebi que o desastre ocorreu quando a crença tradicional na justiça divina começou a ser abalada em minha mente. Se há algo que precisa permanecer intocável é exatamente a certeza de que Deus “é recompensador dos que o buscam, mas justíssimo e terribilíssimo em seus juízos, odeia todo o pecado e de modo algum terá por inocente o culpado”.3
Quando saí do templo eu estava refeito, curado, revivificado, alegre e disposto, e, ao mesmo tempo, solícito em alimentar-me da verdade, como ensina Davi ainda no salmo 37 (v. 3). Toda a mágoa desapareceu. Os pecadores continuam a se afastar do Senhor; quanto a mim, bom é estar junto a Deus: no Senhor ponho o meu refúgio, para proclamar todos os seus feitos, em prosa e em verso, com címbalos retumbantes e com címbalos sonoros, entre gritos de alegria e louvor — eu, que quase troquei a música de adoração pela música profana! Graças a Deus não me tornei pedra de escândalo para os meus 4 mil instrumentistas e cantores e toda a nação de Israel!
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Os filhos de Asafe e as gerações seguintes continuaram com esse ministério de música de adoração por mais de 500 anos. Eles estão presentes na inauguração do templo de Salomão (2 Cr 5.11-14), na restauração do templo e do culto no reavivamento de Josias (2 Cr 35.15), na cerimônia do lançamento dos alicerces do segundo templo na época de Esdras e Neemias (Ed 3.10) e na dedicação dos muros de Jerusalém (Ne 12.35). Estiveram na Babilônia durante o exílio e voltaram com Zorobabel cerca de 500 anos antes de Cristo — eram então 128 ou 148 descendentes (Ed 2.41 e Ne 7.44). Seriam eles os que penduraram suas harpas nos salgueiros da Babilônia e se negaram “a entoar o canto do Senhor em terra estrangeira” (Sl 137.1-4)?
Notas
1 Paráfrase do salmo 73;
2 Frase tomada por empréstimo de Rui Barbosa;
3 Trecho da Confissão de Fé de Westminster.
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Amei!!!! Maravilhosos! Parabéns!
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