A realização do 6º Congresso Brasileiro de Missões é certamente um evento ao qual nos aproximamos com muita gratidão e grande celebração. Este é um evento que aponta para muitos logros e nos cerca de muita alegria. Ele é indicador de uma igreja brasileira que tem experimentado um grande e abundante tempo de graça, o que se pode ver pelo seu contínuo crescimento já por várias décadas e pela sua rica diversificação ministerial. Ele é indicador de uma igreja que aprendeu a olhar para os Evangelhos desde a perspectiva da missão que se doa e vai em direção ao outro, mesmo que esteja longe, quebrando o nosso paradigma histórico de que “missão é o que se recebe”. Ele é, portanto, indicador de uma igreja que está aprendendo a olhar para além de si mesma e sair dos muros das suas fronteiras geográficas, institucionais e paroquiais, no objetivo de alcançar a “tantos quantos possível” com a boa nova do amor de Deus e da salvação em Cristo Jesus.
Ao reunir cerca de duas mil pessoas para este 6º CBM, a linguagem acerca da nossa vocação missionária ganha consistência e volume. E isso que queremos propagar. Queremos dizer à igreja brasileira o que os nossos pais e mães na missão nos ensinaram: “Não existe nenhuma outra igreja senão a Igreja enviada ao mundo e não há outra missão a não ser a da Igreja de Cristo”1. Que a igreja brasileira, portanto, repreenda a tentação de ser e reduzir-se a uma mentalidade e prática quietista e clubista, preocupando-se fundamentalmente consigo mesma. Que ela cresça para dentro da sua vocação missionária. Que ela resista à tentação de fazer da missão um departamento, ou a atividade de um departamento isolado da sua vida eclesial, e se converta àquilo que o Pacto de Lausanne nos ensina: proclamar todo o evangelho para todo o mundo através da mobilização de toda a igreja, como descrito no parágrafo 6 do Pacto de Lausanne, intitulado A Igreja e a Evangelização.
É certo que esse Pacto nos pede mais do que podemos entender e abraçar, pois sempre deixamos a desejar quando queremos o “todo”, sabendo que o máximo que conseguimos é “em parte”. Com Paulo aprendemos que conseguimos apenas o que conseguimos “em parte”, mas prosseguimos para o alvo, que é Cristo Jesus (Fp 3:12-16). Mas este é o segredo da nossa caminhada: seguir os passos de Cristo como o nosso modelo de missão. John Stott acentuou o fato de que a missão é nada mais e nada menos do que seguir a Jesus. Ele também disse que o nosso modelo de missão e a nossa prática missionária devem ser pautados pela sua vida e pelo seu ministério. E, para isso, ele nos convoca a olhar para a “Grande Comissão” segundo o Evangelho de João, pois é lá que a máxima fica absolutamente clara: “Assim, a missão da igreja resulta da própria missão de Deus, e nela tem de ser modelada. ‘Assim como o Pai me enviou’, disse Jesus, ‘também eu vos envio a vós’ (Jo 20.21, cf. 17.18). Então, para entendermos a natureza da missão da Igreja, temos de entender também a natureza da missão do Filho!”2. Vamos analisar alguns significados desse conceito:
• Isso significa aprender a ver o outro segundo os olhos e o coração de Deus. Olhos de amor e coração de compaixão. Olhos e coração compungidos pelo anseio por salvação. É com Jesus que aprendemos a olhar “desse jeito” – um olhar tão profundamente acolhedor que as pessoas nem se dão conta de que é hora de voltar para casa, como aconteceu na primeira multiplicação dos pães. Naquela ocasião, vê-se claramente esta marca nos olhos de Jesus: “Quando Jesus saiu do barco e viu uma grande multidão, teve compaixão deles, porque eram como ovelhas sem pastor. Então começou a ensinar-lhes muitas coisas” (Mc 6:34). O tempo foi passando, a palavra foi sendo semeada e, para surpresa de todos, o pão se multiplicou; e eles voltaram para casa alimentados, acolhidos, instruídos e restaurados.
• Significa aprender a ver o outro na sua totalidade e na sua comunidade, segundo o modelo da encarnação do próprio Jesus que se tornou tudo para todos com o objetivo de alcançar a todos e restaurar tudo. Entre nós, foi novamente John Stott quem nos ajudou a ver a missão com a qual Deus nos agraciou segundo as lentes dessa “totalidade”. Na sua clássica palestra apresentada em Lausanne 74, ele disse que missão “significa tudo aquilo que a igreja é enviada ao mundo para fazer. Ela abriga a dupla vocação da igreja, que é ser ‘o sal da terra’ e ‘a luz do mundo’. Pois Cristo envia a igreja à terra para ser o sal dela, e a envia ao mundo para que lhe sirva de luz”3.
• Significa aprender a olhar o mundo com os olhos de Deus. A missão não é uma mera questão geográfica, étnica, social ou econômica. Ela é salvífica, na consciência de que Deus deseja que “todos os homens sejam salvos e cheguem ao conhecimento da verdade” (1 Tm 2:4). Johannes Blauw diz que “A única distinção que é relevante é a atinente à questão se se ouviu de Cristo ou não. Se não, então há um caso para a missão, não importa se perto ou longe. Na Bíblia, ‘longe’ e ‘perto’ são distinções muito mais heilsgeschichtlich (salvíficas) do que geográficas”4.
Que a igreja brasileira, pois, caminhe no seguimento a Jesus e seja reconhecida por esse seguimento. Que ela molde a sua vivência missionária segundo o modelo pautado pelo Senhor: olhando o outro com compaixão, anunciando a boa nova com graça, abraçando o outro para restauração, criando uma comunidade daqueles que foram chamados por ele e enviando-os ao mundo, assim como o Pai enviou o Filho.
Que a igreja brasileira assuma o seu lugar na história e, coerente com a oportunidade que Deus lhe deu, ande no compasso de uma nação que está sendo chamada a ocupar um lugar destacado no cenário das nações mundiais. Somos um país grande e emergente. Somos um país em crescimento econômico e que está aprendendo a distribuir sua riqueza um pouco melhor. Estamos pleiteando um assento do Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas, onde se decidem as causas grandes e urgentes e os conflitos mundiais. Somos um país a caminho da estabilidade democrática, ainda que lutando com vários dos seus demônios históricos, como a cultura do “jeitinho” e da corrupção. Somos cidadãos privilegiados por vivermos neste grande e bonito país e nesta geração com tantos desafios e de tantas possibilidades.
Deus nos chamou para servi-lo nesta geração. Façamos isso com gratidão, com sentido de vocação, com compromisso de obediência e com a clara demonstração de que somos chamados a viver a nossa fé e exercer a missão que Deus nos deu marcados pela palavra de Jesus que disse: “Minha oração não é apenas por eles. Rogo também por aqueles que crerão em mim, por meio da mensagem deles, para que todos sejam um, Pai, como tu estás em mim e eu em ti. Que eles também estejam em nós, para que o mundo creia que tu me enviaste” (João 17:20, 21).
É exatamente nesta área da relação entre a afirmação da unidade e o exercício da missão que se destaca a nota pioneira deste CBM. Esta nota marca a pauta deste congresso ao colocar em sua abertura uma palavra que, além de estabelecer uma relação entre unidade e missão, coloca a unidade como modelo de missão: Para que o mundo creia.
É possível dizer que, como igreja evangélica brasileira, aprendemos um pouco do que significa estabelecer em nosso país uma igreja que quer ser marcada pelos pilares da Reforma Protestante:Sola Scriptura, Sola Christus, Sola Gratia, Sola Fide, Soli Deo Gloria. Aprendemos um pouco do que significa experimentar crescimento de igreja, diversidade ministerial, articulação de serviço cristão e prática missionária transcultural. Mas o que aprendemos muito pouco e se constitui num dos nossos maiores déficits é o que se refere à unidade da igreja. Nós sabemos, sim, como dividir, e até afirmamos isso dizendo que é dividindo que se cresce, sem nos dar conta de que agindo assim estamos negando o próprio evangelho que queremos vivenciar e anunciar. Pois não há outro evangelho a não ser aquele que nos convoca a vivenciar uma igreja una e santa. Não há outro evangelho senão aquele que, no seguimento a Jesus, o encontra orando para que sejamos um como ele e o Pai o são, para que o mundo creia. É hora de nos convertermos a este evangelho.
1. Em nome do Pai, do Filho e do Espírito SantoA Trindade como modelo de comunidade
Creio que o mais transparente é que eu comece confessando que quanto à Trindade sou um ignorante. Mas sou um ignorante encantado. Não apenas porque tenho muito a aprender no que se refere a Deus como Pai, Filho e Espírito Santo e a convivência deles em comunidade, mas também porque a Trindade não é uma realidade para eu absorver mediante o meu entendimento, mas um convite para a adoração. É que isto eu já entendi: a Trindade não é uma lógica a ser absorvida, mas uma realidade que me convida à adoração. Diante dela reagimos como Maria fez: “Sou serva do Senhor; que aconteça comigo conforme a tua palavra” (Lc 1:38). Maria se entrega ao Senhor e deixa-se possuir pelo Senhor para ser dele e servir a ele. Assim é com a Trindade. Ela nos possui e nós entramos nela em resposta ao convite de Jesus para que a integremos na intensidade da relação entre Pai, Filho e Espírito Santo: “para que todos sejam um, Pai, como tu estás em mim e eu em ti. Que eles também estejam em nós, para que o mundo creia que tu me enviaste” (Jo 17:21).
A verdade é que nós somos, em grande parte, a nossa história. Somos os nossos pais e nossas mães, também na área da fé. Com eles aprendemos a abrir, ler e interpretar a Bíblia. Vemos como eles oram e os imitamos. Olhamos como eles se vestem e esta passa a ser a nossa moda. As palavras que eles usam, nós usamos. O jeito como eles falam da fé passa a ser também o nosso. No meu caso, quanto à Trindade, não me lembro de ter ouvido praticamente nada. Na minha formação, ela era uma grande desconhecida, pois minha escola era excludentemente cristológica. Nessa escola, Cristo é o ponto de partida e de chegada. Aliás, creio que esta rota evangélica caracteriza muitos de nós, e eu continuo a fazer dela o centro do meu testemunho, pois, como dizem as Escrituras, Cristo é “o caminho, a verdade e a vida” (João 14:6). Assim, o meu cristianismo é cristológico, o que eu continuo a crer e afirmar. Com a ênfase cristológica não tenho problema algum e afirmo que ela não deve ser relativizada nem enfraquecida. O que preocupa, no entanto, é o que foi deixado fora e como a realidade do Deus Pai e a do Espírito Santo deixaram de marcar minha espiritualidade e minha missiologia. No entanto, é exatamente para isso que quero abrir os meus braços hoje e vivenciar a bênção da presença da Trindade na minha vida. E isso eu recomendo a todos, que juntos possamos discernir a realidade da Trindade e a sua expressão comunitária.
• A Trindade cobre toda a terra com a realidade da glória de Deus.
• Deus, como criador, está presente em toda a terra e a marca da sua criação está estampada em todos os rincões do universo.
• O Espírito Santo é “o primeiro missionário” presente em todos os lugares e em todo tempo. Ele é o missionário de Deus a querer colocar no coração das pessoas a sede e a necessidade de Deus. O pioneiro em missões modernas, Conde von Zinzendorf, fala da “graça precursora”, que prepara o campo e os corações para ouvirem acerca do “Cordeiro”, na linguagem do Conde. Esta é a ação do Espírito a qual a nossa ação missionária procura identificar e servir.
• O Filho vem como a encarnação do desejo da Trindade em compartilhar do amor salvífico de Deus a uma humanidade perdida em seus próprios devaneios e desesperanças.
2. Senhor, ensina-nos a orar!A oração sacerdotal
A oração sacerdotal de Jesus, encontrada em João 17, é marcada por uma beleza e intensidade ímpar. Ela traduz a beleza da intimidade e a intensidade de quem sabe para onde está indo: para a cruz!
• Desenhando a intimidade entre o Pai e o Filho com um sentido de missão cumprida: “Eu te glorifiquei na terra, completando a obra que me deste para fazer” (Jo 17:4). Esta é a unidade na missão, no objetivo da glorificação do Pai.
• Os discípulos são convidados a entrar nessa comunidade da Trindade. É dessa comunidade que eles extrairão a seiva para a continuidade da sua vocação: Para que o mundo creia.
• A unidade dos discípulos à luz da experiência da relação entre Pai e Filho é fator de missão: “Vede como se amam” – e por isso queremos ser como eles e fazer parte da comunidade deles.
3. “Para que o mundo creia”Com o que estamos alimentando a crença do mundo?
• Nosso testemunho é a nossa vida e nossa vida é o nosso testemunho. Sempre estamos testemunhando alguma coisa.
• Celebrando o nosso kairós com profunda gratidão:
a) Os pobres e os jovens continuam a chegar
b) As igrejas continuam a crescer e os ministérios a se multiplicar
c) Pessoas continuam a se disponibilizar para a missão trancultural
• Sinais de alerta e caminhos idolátricos
Na sua memorável participação em Lausanne III, Chris Wright nos lembrou que, segundo o testemunho das Escrituras, “o maior problema de Deus no que se refere a sua missão redentora no mundo ... é o seu próprio povo.” E ele continua: “O que mais machuca o coração de Deus, assim parece, não é apenas o pecado do mundo, mas o fracasso, a desobediência e a rebelião daqueles que Deus redimiu e chamou para ser o seu povo. Seu povo santo e distinto”6.
• A relativização da Palavra
• O encanto com o “sucesso” e a popularidade
• A fraqueza em relação ao dinheiro e ao poder
• As babilônicas construções institucionais – que tipo de igreja queremos?
• Crise de credibilidade na sociedade e a rápida desconstrução da “imagem evangélica”
• Alimentamos e não transformamos a cultura divisionista e clientelista da nossa sociedade
4. O convite para correr uma maratonaO chamado à conversão
• Somos chamados a ser comunidade aos pés de Jesus, desenhando uma espiritualidade de relação, entrega e adoração.
• Somos chamados a ser comunidade em missão: pregando o evangelho, curando os enfermos e expulsando demônios, desenhando, assim, uma prática missionária na qual a encarnação é a nossa marca; e a “marca” que nos envia está disposta a desaparecer.
• Somos chamados a vivenciar a nossa unidade:
a) Como um testemunho do evangelho de Jesus Cristo
b) Apontando para a unidade da Trindade e convidando para a adoração a ele
c) Como um serviço a nossa cultura/realidade brasileira
d) Desenhando uma prática missionária da missão integral e da construção de comunidades onde sejamos um só corpo: “quer judeus, quer gregos, quer escarvos, quer livres. E a todos nós foi dado beber de um único Espírito”(1 Co 12.13).
5. Conclusão: Senhor, dá-nos o dom da unidade... para que o mundo creia!
James Houston sempre acentua que um dom de Deus é radicalmente um dom de Deus. Ou seja, é algo que nunca teríamos por nós mesmos e só passamos a tê-lo como um inquestionável presente de Deus. É algo de que nós precisamos desesperadamente mas não teríamos a mínima possibilidade de tê-lo – a não ser que o recebamos como um dom de Deus. Por vezes, vivemos tão profundamente na ignorância e na autossuficiência que nem nos damos conta do quanto precisamos desse dom e de quanto a sua ausência está empobrecendo a nossa vida e ministério e mesmo comprometendo o próprio evangelho de Jesus Cristo, o qual queremos oferecer como modelo de vida pessoal e comunitário.
Esta é a exata descrição da nossa ausência de compromisso com a unidade cristã e da lacuna que isso constitui no nosso testemunho evangélico. Nós não temos a visão para a unidade da fé, pois estamos muito mais interessados no enraizamento dos nossos próprios ministérios. Nós não temos uma teologia que afirme a unidade como status confessionis de fé cristã, pois estamos muito seguros de que a “nossa doutrina” é melhor do que a do outro. Não temos uma herança evangélica que afirme a necessidade de caminharmos juntos no testemunho a Cristo, porque somos fruto de uma cultura evangélica que tem muito medo do outro, é essencialmente divisionista e só quer promover o seu “pacote” doutrinário. Nós não temos uma cultura brasileira que nos empurre para o encontro edificante com o outro, pois somos filhos culturais da exclusão, da segmentação e da liberdade moral individual. Dançamos efusivamente na avenida em exuberante demonstração da nossa carnalidade e da nossa beleza. “Eu sou mais eu” é o lema da nossa cultura carnavalesca, política e evangélica. É por sermos o que somos e não termos o que tanto precisamos que devemos orar:
“Senhor, dá-nos o dom da unidade”
Dá-nos a unidade no serviço, que coloca o interesse do outro acima do nosso próprio.
Dá-nos a unidade da fé que nos leva ao redor da mesa da comunhão.
Dá-nos a unidade na missão para que, juntos, semeemos no outro o desejo de te conhecer.
Dá-nos a unidade no culto para que, juntos, te adoremos como Deus Pai, Filho e Espírito Santo!
A nossa falta de compromisso com a unidade da igreja não honra o evangelho, não se constitui em testemunho de credibilidade junto à nossa sociedade, não se constitui em saudável prática missionária e não resiste aos desafios do nosso tempo. Aliás, vivemos um novo tempo em que a ênfase na unidade cristã é essencial:
• Por causa do evangelho
• Por causa do movimento da igreja para o sul do mundo
• Por causa dos desafios religiosos e secularizantes que experimentamos hoje
• Por causa dos grandes desafios ecológicos que põem a vida de muitos, senão de todos, em risco
• Por causa da falta de compromisso da nossa sociedade com a vida, onde e quando tudo vale desde que seja “eu” que o faça.
Senhor, ensina-nos a andar nos passos da tua oração sacerdotal: Para que o mundo creia!
Notas[1] Johannes Blauw, A Natureza Missionária da Igreja (Aste, São Paulo, 1966), 122.
[2] John Stott, A Base Bíblica da Evangelização, em A Serviço do Reino, ed. Valdir Steuernagel (Missão Editora, BH, 1992), 58
[3] John Stott, A Base Bíblica da Evangelização, 62.
[4] Johannes Blauw, 113
[5] Valdir Steuernagel, Obediência Missionária e Prática Histórica. Em Busca de Modelos (ABU Editora, São Paulo, 1993), 108.
[6] Chris Wright, Calling the Church of Christ back to Humility, Integrity and Simplicity. Manuscrito não publicado.
_________
Valdir Steuernagel
Nenhum comentário:
Postar um comentário