Usando a mesma linguagem sobre o “sopro divino” utilizada pelo narrador do livro de Gênesis, costumo afirmar que a criança recém-nascida está, mais que um adulto, encharcada pelo gracioso hálito de Deus. Se não cuidarmos bem de nós mesmos, com o tempo, perderemos o sabor virtuoso do bafo divino. Crianças são assim: chegam vazias de tudo, de posses, escolhas, poder. Elas são simplesmente a vida humana como prolongamento do SER em sua manifestação “mais feliz”. “Quem recebe esta criança em meu nome, está me recebendo; e quem me recebe, está recebendo aquele que me enviou” (Lc 9.48, NVI). Tenho olhado para estas palavras de Jesus como indicação de uma das formas da manifestação de Deus, por meio das crianças. É o Verbo se fazendo carne — mesmo que parcialmente — em cada revelação misteriosa da procriação humana, sem que as marcas ou práticas do pecado tenham ainda se manifestado. Encontrando o reino de Deus no olhar da criança Se a criança já é em si mesma uma manifestação da presença de Deus, como, então, aprenderemos a buscar na vida e experiência das crianças o que elas nos manifestam a respeito de Deus?Quero aprender a aproximar-me das crianças como quem acolhe a bondade, a justiça, o carinho e a singeleza de Deus concentradas num pequeno ser que pode ser tomado nos braços e recebido como o Messias seria recebido. Quero ler e interpretar a criança com a sensibilidade dos olhos de Jesus Cristo. Jesus disse: “Os olhos são a candeia do corpo. Se os seus olhos forem bons, todo o seu corpo será cheio de luz” (Mt 6.22, NVI). Os olhos das crianças conseguem visualizar melhor as promessas do reino de Deus. Esse reino pertence a elas. Visitei uma escola rural em Jaguaquara, BA. Um garoto de 10 anos, ao ser apresentado a mim, de tanta timidez, colocou a mão direita sobre os olhos como se procurasse esconder o rosto do meu olhar. Ele não sabia, porém, que eu era quem estava sendo submetido a um sentimento de insignificância diante da manifestação da singeleza de Deus. A mão do garoto sobre o rosto funcionou para mim como o véu usado por Moisés, para que o povo não fosse consumido pela glória de Deus. Os olhos do garoto, que por graça de Deus vi apenas algumas vezes, comunicavam ingenuidade, pureza, humildade e mansidão; afinal, muito do que imagino, poderia ter percebido nos olhos de Jesus na sua infância. O choro de muitas crianças tem me levado a pensar, algumas vezes, na lágrima, no lamento de Deus Pai; outras vezes, nos cálices e calvários que se repetem na vida dos filhos das periféricas nazarés. O contentamento das crianças, ainda que diante de situações trágicas, tem me levado a acolher o poder do Consolador diante de tribulações e dor. Essas crianças que gostam mais dos campos e das praças do que das catedrais e palácios me desafiam a buscar o reino de Deus no espaço onde elas sobrevivem — o reino de Deus pertence a elas. Jesus divide os seres humanos adultos entre os que se tornam crianças e os “não-crianças”. Como as crianças transmitem mais alegria do que tristeza, mais vida do que morte, assim também são os que se tornam crianças. Para os demais — os não-crianças —, a morte se avizinha, trazendo consigo tudo que provoca tristeza. Felizes os homens e mulheres que, recebendo uma criança, são outra vez inundados pelo sopro divino e voltam a desfrutar a vida no seu projeto mais original e singular. Por meio das crianças Deus se revela sem mistério.
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